Por Jomar Morais
Devido a relevância do tema, reproduzimos com a autorização do autor a matéria do jornalista Jomar Morais que foi capa da Revista Super Interessante em maio de 2001.
Mortes provocadas por remédios que deveriam curar, exames e cirurgias caros e desnecessários, tratamento desumano de pacientes. Um conjunto de distorções abala a confiança nos médicos e expõe a crise sem precedentes por que passa a medicina.
Flagrante do cotidiano em um consultório médico do terceiro milênio: o executivo Roberto entrega ao doutor um calhamaço de exames e logo fica sabendo que sua saúde não anda bem. O colesterol alcançou a estratosférica taxa de 800 miligramas por decilitro – mesmo no futuro, uma taxa superior a 250 miligramas indica que o sujeito vai mal –, o que faz de Roberto um candidato fortíssimo a ter um infarto fulminante. O caso exige cuidados imediatos. Mas, ao contrário do que ocorre hoje, o médico não saca a caneta para gerar uma prescrição. Limita-se a digitar em um banco de dados online a seqüência de genes das células sangüíneas do executivo e a aguardar, por alguns instantes, o trabalho de uma pequena impressora. É dali que emerge uma receita completa e específica com a indicação, entre quase 200 remédios disponíveis no mercado, daquele que melhor interage com o paciente.
É tudo tão rápido que a tradicional consulta médica dura só alguns minutos. Afinal, são máquinas inteligentes, conectadas a bancos de dados colossais, que se encarregam praticamente sozinhas do diagnóstico, levando em consideração todas as características orgânicas e genéticas do paciente, seu histórico médico, entre outros parâmetros. Transformado em simples intermediário entre o paciente e a tecnologia, ao doutor cabe apenas alimentar o sistema com dados de análises de sangue e tecidos orgânicos realizadas – adivinhe – por outros engenhos eletrônicos. É o máximo em automação e customização do atendimento, num contexto em que a prescrição de uma simples aspirina pode mobilizar e cruzar milhões de informações.
Com certeza você ainda não conhece nenhum médico que trabalhe assim, apesar da parafernália tecnológica já utilizada pela medicina moderna. Mas o quadro descrito acima deverá fazer parte da vida real nos próximos cinco anos, graças a um novo ramo da ciência que une a farmacopéia às descobertas recentes sobre o genoma humano – a farmacogenômica. O curioso é que, em vez de trazer a certeza de que, nessa cena futurista, os serviços médicos atingirão o ápice em qualidade, a promessa de mais automatismo na medicina só atiça uma polêmica emergente em todo o mundo: o modelo biomédico, sobre o qual se apóiam as rotinas atuais de clínicas e hospitais – e também a produção de medicamentos –, atende, de fato, às necessidades do homem no campo da saúde?
Eis aí um paradoxo. Enquanto a intimidade microscópica do organismo é devassada pela ciência e mais e mais recursos high-tech são incorporados aos sistemas de diagnóstico e terapia, cresce também a insatisfação das pessoas com os custos, o atendimento, e, sobretudo, com a promessa fria de eficácia dos procedimentos médicos. "Em todos os setores a sofisticação tecnológica reduziu custos e aumentou a satisfação do cliente, exceto na medicina", diz Flávio Corrêa Próspero, presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida. Hoje as pessoas buscam muito mais os médicos do que no passado, gastam pequenas fortunas com exames, estão quase que continuamente tomando algum remédio e, no final, sempre descobrem que não se livraram de antigas complicações ou que contraíram alguma das novas doenças que não param de engordar a lista oficial de moléstias catalogadas – ela já soma 30 000 itens. Além disso, a tecnologia médica parece ter promovido o distanciamento entre o terapeuta e o paciente, desumanizando a prática profissional e abalando uma relação milenar associada ao processo de cura. A julgar pelo novo horizonte trazido pela farmacogenômica, esse fosso deverá ampliar-se ainda mais quando as máquinas de prescrição invadirem os consultórios.
A noção de que há algo errado com a medicina como a conhecemos é consensual. Falam disso usuários e críticos dos serviços de saúde. E também os próprios médicos, tradicionalmente uma das categorias profissionais mais marcadas pelo corporativismo. O que varia são as leituras da situação, que apontam causas e soluções distintas para o problema. Outro sinalizador da crise que, aos poucos, se instala na área da saúde é a corrida de usuários da medicina convencional para as chamadas terapias alternativas, métodos de cura baseados em paradigmas que se opõem ao modelo médico hegemônico, geralmente originárias do Oriente. Na França, estima-se que 82% dos pacientes superpõem a seus tratamentos na medicina oficial as terapias alternativas. Nos Estados Unidos, 35% da população já freqüenta consultórios de homeopatas, acupunturistas e outros terapeutas que não fazem uso de drogas químicas, os chamados remédios alopatas. Inflando a onda de contestações, há uma série de falhas que contribuem para minar a confiança de pacientes nos ritos médicos tradicionais.
Medicamentos matam mais de 100 000 americanos por ano
Tomem-se, por exemplo, alguns números dos Estados Unidos, o centro médico mais avançado do mundo. Ali, segundo estimativa da própria Associação Médica Americana, a cada ano 2,2 milhões de pessoas contraem doenças e outras 106 000 morrem devido a efeitos colaterais de medicamentos, a quarta causa de óbitos no país. Um espanto quando se considera o rigor da FDA, a agência federal de controle de drogas. O órgão costuma autorizar a comercialização de um novo remédio somente após uma seqüência de estudos que envolvem milhares de pacientes ao longo de cinco ou mais anos. (No Brasil, quinto país do mundo em consumo de medicamentos, a Fundação Oswaldo Cruz estima em 24 000 as mortes anuais por intoxicação medicamentosa.) Nos hospitais,98 000 americanos teriam morrido, no ano passado, vitimados por erros médicos grosseiros. Mas Janet Corrigan, diretora de Serviços de Saúde do Instituto de Medicina (IoM), um órgão do governo, acha que o número foi subestimado. "O erro médico tem sido ocultado", diz Janet. O número seria maior se computados os casos ocorridos em casas de repouso, prontos-socorros e consultórios. Incluam-se nesse rol de problemas as queixas contra efeitos colaterais das vacinas – foram 108 000, no ano passado, apenas através do site do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos – e se perceberá que o raio-x da medicina oficial está marcado por nódulos e obstruções.
Seria loucura negar, sob o pretexto dessas distorções, a contribuição dos serviços médicos à melhoria da qualidade de vida e à longevidade no mundo atual. Quem, vivendo em algum lugar minimamente civilizado, não conhece pelo menos um caso de alguém salvo da morte ou libertado da doença graças à pronta intervenção médica? O que os problemas em debate revelam é que essa contribuição pode estar aquém do que se imagina, numa relação custo-benefício bastante desfavorável para quem paga a conta – o paciente. Um estudo da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, com o objetivo de aferir os fatores que levam uma pessoa a viver mais de 65 anos, mostrou que a assistência médica é o que menos pesa: apenas 10% num conjunto em que o estilo de vida participa com 53%, as condições ambientais com 20% e a herança genética com 17%. É muito pouco quando se compara esse percentual aos preços salgados e aos lucros gordos que envolvem a assistência médica.
Cerca de 85% dos exames solicitados têm resultados negativos
Na última década, os serviços médico-hospitalares cresceram em torno de 12% ao ano nos Estados Unidos. Estima-se que eles responderão por 15% do PIB americano este ano, algo em torno de 1,3 trilhão de dólares. (Isso dá mais de duas vezes o PIB brasileiro.) Em média, cada cidadão americano gasta 4 800 dólares por ano com consultas médicas, exames e internações. No Brasil, onde a assistência médica compõe 4% do PIB (algo como 24 bilhões de dólares), a Fundação Getúlio Vargas estima que na cidade de São Paulo, o maior centro médico do país, a indústria da saúde cresce em torno de 15% ao ano.
Os números de Stanford apontam para problemas que, até há pouco, se mantinham encobertos pela suposição de que a simples sofisticação tecnológica e a variedade de drogas produzidas pela indústria farmacêutica bastavam para derrotar tanto as velhas doenças quanto as novas moléstias. Sabe-se agora que é enorme o desperdício na utilização da tecnologia – um dos principais fatores dos altos custos médicos –, bem como o abuso na prescrição de remédios e indicação de cirurgias. "A escola americana de medicina, modelo seguido no Brasil, é muito intervencionista", afirma a doutora Regina Parizi, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. "Nesse modelo apela-se demais à cirurgia e aos procedimentos agressivos." Compare: enquanto no Japão apenas um em cada 100 000 habitantes é submetido a algum tipo de cirurgia coronária por ano, nos Estados Unidos essa proporção sobe para 61 por 100 000. Não há também justificativa lógica para o fato de 51% dos partos no Estado de São Paulo acontecerem mediante operações cesarianas.
Na verdade, diz o psiquiatra paulistano e doutor em psicossomática Wilhelm Kenzler, cerca de 85% dos exames solicitados pelos médicos – o número varia de seis a 28 na consulta inicial – apresentam resultados negativos. E mais de 90% dos diagnósticos se resumem nas siglas NDN (nada digno de nota) ou DNV (distúrbio neurovegetativo, ou seja, uma crise nervosa). Mesmo assim a maioria dos pacientes volta para casa com uma receita de medicamento, cujo uso – dispensável na maioria dos casos, como se pode perceber – pode ser o ponto de partida de "doenças iatrogênicas", aquelas que são causadas por tratamentos médicos inadequados.
Eis aqui outro paradoxo. Enquanto se queixam do relacionamento frio e impessoal com a medicina, os pacientes cada vez mais transferem para os médicos e seu arsenal químico e tecnológico a responsabilidade pela própria saúde e a de seus familiares. Não raro, são eles próprios que acionam o circuito do desperdício e da dependência, pressionando pela prescrição de exames e de drogas. Se isso não acontece, costumam entrar em pânico ou duvidar do profissional, como afirma o pediatra americano Wells Shoemaker. Ao atender em seu consultório, no interior da Califórnia, um menino acometido de resfriado comum, o médico recomendou apenas repouso e boa alimentação. Para sua surpresa, a mãe da criança, inconformada, exclamou que não voltaria para casa sem uma receita. "Meu filho precisa de antibióticos", disse a mulher. "É assim que ele cura seus resfriados." O pediatra ainda tentou explicar que antibióticos combatem bactérias e não vírus, os causadores de resfriados, além de serem substâncias perigosas, com muitos efeitos adversos no organismo. Em vão. Aos berros, a mãe do menino encerrou a consulta: "Vou procurar um doutor que saiba cuidar de crianças".
Mas, afinal, o que está mesmo acontecendo com a medicina? Por que tantos exageros e descontentamentos numa época em que o conhecimento das ciências médicas, segundo o doutor em neurofisiologia Renato Sabbatini, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em Campinas, dobra a cada três anos e em que não existe limite para a tecnologia que desbrava o corpo humano? "Isso ocorre devido a três pontos críticos", diz Wilhelm. "À despersonalização, à tecnificação e à mercantilização da medicina." Na raiz desses males estaria o próprio conjunto de conceitos e hipóteses que fundamentam a moderna prática médica – o modelo biomédico moldado há três séculos.
Para entendê-lo é necessário recuar no tempo para encontrar dois marcos na história do conhecimento: o físico inglês Isaac Newton e o filósofo francês René Descartes. No século XVII, Newton concebeu o universo como um imenso mecanismo de relógio, possível de ser compreendido a partir do estudo de suas partes. Na mesma época, Descartes estabeleceu a visão dualista do homem, separando mente e corpo como entidades independentes. Nos séculos seguintes, tais idéias constituíram o cerne do que hoje é conhecido como o paradigma cartesiano-newtoniano, base de todos os sistemas conceituais nos diversos ramos da ciência. Na medicina, a aplicação do paradigma mecanicista deu ênfase ao estudo isolado de órgãos e tecidos, o que foi reforçado ainda mais pelos grandes avanços da microbiologia no século XIX.
O modelo biomédico consiste basicamente em três premissas: o corpo é uma máquina, a doença é conseqüência de uma avaria em alguma de suas peças e a tarefa do médico é consertá-la. A partir daí é que se determinou a prática médica atual, a organização da assistência à saúde e a formação dos recursos humanos nessa área, caracterizando-se a ruptura com a tradição inspirada no grego Hipócrates (século V a.C.) e seus valores humanísticos. "As raízes da medicina hipocrática se assentavam na filosofia da natureza e seu sistema teórico partia de uma visão holística que entendia o homem como um ser dotado de corpo e espírito", afirma Dante Gallian, pesquisador do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo. O médico clássico era um filósofo. Conhecia a alma humana e a cultura local, andava muito próximo de seus pacientes e atuava como conselheiro em assuntos como o despertar da sexualidade nos adolescentes, os problemas de relacionamento do casal e outras questões da vida familiar. Diante das limitações terapêuticas, permanecia ao lado do enfermo e seus familiares, ajudando-os no sofrimento e na preparação para a morte. A figura romântica desse clínico geral foi sepultada pela explosão das especializações no século XX, quando o reducionismo impôs-se de vez à prática médica ocidental. O médico, então, tornou-se um técnico, um especialista com grande conhecimento específico e quase sempre sem noção do todo.
Devido a relevância do tema, reproduzimos com a autorização do autor a matéria do jornalista Jomar Morais que foi capa da Revista Super Interessante em maio de 2001.
Mortes provocadas por remédios que deveriam curar, exames e cirurgias caros e desnecessários, tratamento desumano de pacientes. Um conjunto de distorções abala a confiança nos médicos e expõe a crise sem precedentes por que passa a medicina.
Flagrante do cotidiano em um consultório médico do terceiro milênio: o executivo Roberto entrega ao doutor um calhamaço de exames e logo fica sabendo que sua saúde não anda bem. O colesterol alcançou a estratosférica taxa de 800 miligramas por decilitro – mesmo no futuro, uma taxa superior a 250 miligramas indica que o sujeito vai mal –, o que faz de Roberto um candidato fortíssimo a ter um infarto fulminante. O caso exige cuidados imediatos. Mas, ao contrário do que ocorre hoje, o médico não saca a caneta para gerar uma prescrição. Limita-se a digitar em um banco de dados online a seqüência de genes das células sangüíneas do executivo e a aguardar, por alguns instantes, o trabalho de uma pequena impressora. É dali que emerge uma receita completa e específica com a indicação, entre quase 200 remédios disponíveis no mercado, daquele que melhor interage com o paciente.
É tudo tão rápido que a tradicional consulta médica dura só alguns minutos. Afinal, são máquinas inteligentes, conectadas a bancos de dados colossais, que se encarregam praticamente sozinhas do diagnóstico, levando em consideração todas as características orgânicas e genéticas do paciente, seu histórico médico, entre outros parâmetros. Transformado em simples intermediário entre o paciente e a tecnologia, ao doutor cabe apenas alimentar o sistema com dados de análises de sangue e tecidos orgânicos realizadas – adivinhe – por outros engenhos eletrônicos. É o máximo em automação e customização do atendimento, num contexto em que a prescrição de uma simples aspirina pode mobilizar e cruzar milhões de informações.
Com certeza você ainda não conhece nenhum médico que trabalhe assim, apesar da parafernália tecnológica já utilizada pela medicina moderna. Mas o quadro descrito acima deverá fazer parte da vida real nos próximos cinco anos, graças a um novo ramo da ciência que une a farmacopéia às descobertas recentes sobre o genoma humano – a farmacogenômica. O curioso é que, em vez de trazer a certeza de que, nessa cena futurista, os serviços médicos atingirão o ápice em qualidade, a promessa de mais automatismo na medicina só atiça uma polêmica emergente em todo o mundo: o modelo biomédico, sobre o qual se apóiam as rotinas atuais de clínicas e hospitais – e também a produção de medicamentos –, atende, de fato, às necessidades do homem no campo da saúde?
Eis aí um paradoxo. Enquanto a intimidade microscópica do organismo é devassada pela ciência e mais e mais recursos high-tech são incorporados aos sistemas de diagnóstico e terapia, cresce também a insatisfação das pessoas com os custos, o atendimento, e, sobretudo, com a promessa fria de eficácia dos procedimentos médicos. "Em todos os setores a sofisticação tecnológica reduziu custos e aumentou a satisfação do cliente, exceto na medicina", diz Flávio Corrêa Próspero, presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida. Hoje as pessoas buscam muito mais os médicos do que no passado, gastam pequenas fortunas com exames, estão quase que continuamente tomando algum remédio e, no final, sempre descobrem que não se livraram de antigas complicações ou que contraíram alguma das novas doenças que não param de engordar a lista oficial de moléstias catalogadas – ela já soma 30 000 itens. Além disso, a tecnologia médica parece ter promovido o distanciamento entre o terapeuta e o paciente, desumanizando a prática profissional e abalando uma relação milenar associada ao processo de cura. A julgar pelo novo horizonte trazido pela farmacogenômica, esse fosso deverá ampliar-se ainda mais quando as máquinas de prescrição invadirem os consultórios.
A noção de que há algo errado com a medicina como a conhecemos é consensual. Falam disso usuários e críticos dos serviços de saúde. E também os próprios médicos, tradicionalmente uma das categorias profissionais mais marcadas pelo corporativismo. O que varia são as leituras da situação, que apontam causas e soluções distintas para o problema. Outro sinalizador da crise que, aos poucos, se instala na área da saúde é a corrida de usuários da medicina convencional para as chamadas terapias alternativas, métodos de cura baseados em paradigmas que se opõem ao modelo médico hegemônico, geralmente originárias do Oriente. Na França, estima-se que 82% dos pacientes superpõem a seus tratamentos na medicina oficial as terapias alternativas. Nos Estados Unidos, 35% da população já freqüenta consultórios de homeopatas, acupunturistas e outros terapeutas que não fazem uso de drogas químicas, os chamados remédios alopatas. Inflando a onda de contestações, há uma série de falhas que contribuem para minar a confiança de pacientes nos ritos médicos tradicionais.
Medicamentos matam mais de 100 000 americanos por ano
Tomem-se, por exemplo, alguns números dos Estados Unidos, o centro médico mais avançado do mundo. Ali, segundo estimativa da própria Associação Médica Americana, a cada ano 2,2 milhões de pessoas contraem doenças e outras 106 000 morrem devido a efeitos colaterais de medicamentos, a quarta causa de óbitos no país. Um espanto quando se considera o rigor da FDA, a agência federal de controle de drogas. O órgão costuma autorizar a comercialização de um novo remédio somente após uma seqüência de estudos que envolvem milhares de pacientes ao longo de cinco ou mais anos. (No Brasil, quinto país do mundo em consumo de medicamentos, a Fundação Oswaldo Cruz estima em 24 000 as mortes anuais por intoxicação medicamentosa.) Nos hospitais,98 000 americanos teriam morrido, no ano passado, vitimados por erros médicos grosseiros. Mas Janet Corrigan, diretora de Serviços de Saúde do Instituto de Medicina (IoM), um órgão do governo, acha que o número foi subestimado. "O erro médico tem sido ocultado", diz Janet. O número seria maior se computados os casos ocorridos em casas de repouso, prontos-socorros e consultórios. Incluam-se nesse rol de problemas as queixas contra efeitos colaterais das vacinas – foram 108 000, no ano passado, apenas através do site do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos – e se perceberá que o raio-x da medicina oficial está marcado por nódulos e obstruções.
Seria loucura negar, sob o pretexto dessas distorções, a contribuição dos serviços médicos à melhoria da qualidade de vida e à longevidade no mundo atual. Quem, vivendo em algum lugar minimamente civilizado, não conhece pelo menos um caso de alguém salvo da morte ou libertado da doença graças à pronta intervenção médica? O que os problemas em debate revelam é que essa contribuição pode estar aquém do que se imagina, numa relação custo-benefício bastante desfavorável para quem paga a conta – o paciente. Um estudo da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, com o objetivo de aferir os fatores que levam uma pessoa a viver mais de 65 anos, mostrou que a assistência médica é o que menos pesa: apenas 10% num conjunto em que o estilo de vida participa com 53%, as condições ambientais com 20% e a herança genética com 17%. É muito pouco quando se compara esse percentual aos preços salgados e aos lucros gordos que envolvem a assistência médica.
Cerca de 85% dos exames solicitados têm resultados negativos
Na última década, os serviços médico-hospitalares cresceram em torno de 12% ao ano nos Estados Unidos. Estima-se que eles responderão por 15% do PIB americano este ano, algo em torno de 1,3 trilhão de dólares. (Isso dá mais de duas vezes o PIB brasileiro.) Em média, cada cidadão americano gasta 4 800 dólares por ano com consultas médicas, exames e internações. No Brasil, onde a assistência médica compõe 4% do PIB (algo como 24 bilhões de dólares), a Fundação Getúlio Vargas estima que na cidade de São Paulo, o maior centro médico do país, a indústria da saúde cresce em torno de 15% ao ano.
Os números de Stanford apontam para problemas que, até há pouco, se mantinham encobertos pela suposição de que a simples sofisticação tecnológica e a variedade de drogas produzidas pela indústria farmacêutica bastavam para derrotar tanto as velhas doenças quanto as novas moléstias. Sabe-se agora que é enorme o desperdício na utilização da tecnologia – um dos principais fatores dos altos custos médicos –, bem como o abuso na prescrição de remédios e indicação de cirurgias. "A escola americana de medicina, modelo seguido no Brasil, é muito intervencionista", afirma a doutora Regina Parizi, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. "Nesse modelo apela-se demais à cirurgia e aos procedimentos agressivos." Compare: enquanto no Japão apenas um em cada 100 000 habitantes é submetido a algum tipo de cirurgia coronária por ano, nos Estados Unidos essa proporção sobe para 61 por 100 000. Não há também justificativa lógica para o fato de 51% dos partos no Estado de São Paulo acontecerem mediante operações cesarianas.
Na verdade, diz o psiquiatra paulistano e doutor em psicossomática Wilhelm Kenzler, cerca de 85% dos exames solicitados pelos médicos – o número varia de seis a 28 na consulta inicial – apresentam resultados negativos. E mais de 90% dos diagnósticos se resumem nas siglas NDN (nada digno de nota) ou DNV (distúrbio neurovegetativo, ou seja, uma crise nervosa). Mesmo assim a maioria dos pacientes volta para casa com uma receita de medicamento, cujo uso – dispensável na maioria dos casos, como se pode perceber – pode ser o ponto de partida de "doenças iatrogênicas", aquelas que são causadas por tratamentos médicos inadequados.
Eis aqui outro paradoxo. Enquanto se queixam do relacionamento frio e impessoal com a medicina, os pacientes cada vez mais transferem para os médicos e seu arsenal químico e tecnológico a responsabilidade pela própria saúde e a de seus familiares. Não raro, são eles próprios que acionam o circuito do desperdício e da dependência, pressionando pela prescrição de exames e de drogas. Se isso não acontece, costumam entrar em pânico ou duvidar do profissional, como afirma o pediatra americano Wells Shoemaker. Ao atender em seu consultório, no interior da Califórnia, um menino acometido de resfriado comum, o médico recomendou apenas repouso e boa alimentação. Para sua surpresa, a mãe da criança, inconformada, exclamou que não voltaria para casa sem uma receita. "Meu filho precisa de antibióticos", disse a mulher. "É assim que ele cura seus resfriados." O pediatra ainda tentou explicar que antibióticos combatem bactérias e não vírus, os causadores de resfriados, além de serem substâncias perigosas, com muitos efeitos adversos no organismo. Em vão. Aos berros, a mãe do menino encerrou a consulta: "Vou procurar um doutor que saiba cuidar de crianças".
Mas, afinal, o que está mesmo acontecendo com a medicina? Por que tantos exageros e descontentamentos numa época em que o conhecimento das ciências médicas, segundo o doutor em neurofisiologia Renato Sabbatini, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em Campinas, dobra a cada três anos e em que não existe limite para a tecnologia que desbrava o corpo humano? "Isso ocorre devido a três pontos críticos", diz Wilhelm. "À despersonalização, à tecnificação e à mercantilização da medicina." Na raiz desses males estaria o próprio conjunto de conceitos e hipóteses que fundamentam a moderna prática médica – o modelo biomédico moldado há três séculos.
Para entendê-lo é necessário recuar no tempo para encontrar dois marcos na história do conhecimento: o físico inglês Isaac Newton e o filósofo francês René Descartes. No século XVII, Newton concebeu o universo como um imenso mecanismo de relógio, possível de ser compreendido a partir do estudo de suas partes. Na mesma época, Descartes estabeleceu a visão dualista do homem, separando mente e corpo como entidades independentes. Nos séculos seguintes, tais idéias constituíram o cerne do que hoje é conhecido como o paradigma cartesiano-newtoniano, base de todos os sistemas conceituais nos diversos ramos da ciência. Na medicina, a aplicação do paradigma mecanicista deu ênfase ao estudo isolado de órgãos e tecidos, o que foi reforçado ainda mais pelos grandes avanços da microbiologia no século XIX.
O modelo biomédico consiste basicamente em três premissas: o corpo é uma máquina, a doença é conseqüência de uma avaria em alguma de suas peças e a tarefa do médico é consertá-la. A partir daí é que se determinou a prática médica atual, a organização da assistência à saúde e a formação dos recursos humanos nessa área, caracterizando-se a ruptura com a tradição inspirada no grego Hipócrates (século V a.C.) e seus valores humanísticos. "As raízes da medicina hipocrática se assentavam na filosofia da natureza e seu sistema teórico partia de uma visão holística que entendia o homem como um ser dotado de corpo e espírito", afirma Dante Gallian, pesquisador do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo. O médico clássico era um filósofo. Conhecia a alma humana e a cultura local, andava muito próximo de seus pacientes e atuava como conselheiro em assuntos como o despertar da sexualidade nos adolescentes, os problemas de relacionamento do casal e outras questões da vida familiar. Diante das limitações terapêuticas, permanecia ao lado do enfermo e seus familiares, ajudando-os no sofrimento e na preparação para a morte. A figura romântica desse clínico geral foi sepultada pela explosão das especializações no século XX, quando o reducionismo impôs-se de vez à prática médica ocidental. O médico, então, tornou-se um técnico, um especialista com grande conhecimento específico e quase sempre sem noção do todo.
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