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domingo, 4 de março de 2012

Isso sara

Escrito por Denis Cruz   
- Ai, ai... Que droga! Ai, ai, aiiiiiiiii...

O jovem Felipe se contorcia no chão, segurando o pé direito e praguejando com todos os impropérios de seu vocabulário de adolescente de 17 anos. Ele havia acabado de dar uma topada com o dedo mindinho do pé no canto do sofá.

Luíza, sua mãe, chegou desesperada e, quando olhou o dedo do rapaz, viu que não era brincadeira. O sofá tinha sido arrastado uns cinquenta centímetros com a pancada de Felipe e o dedo já começava a inchar.

De imediato, a atenciosa mãe pegou a chave do carro e Felipe foi mancando e reclamando até o veículo. Foram direto ao pronto-socorro mais próximo.

Já no hospital, duas enfermeiras vieram correndo para atender Felipe, pois ficaram assustadas com os gritos do garoto.

Quando notaram que era apenas um dedo, as enfermeiras pareceram até mesmo desapontadas - e aliviadas, claro -, pois não era tão sério quanto os prantos que anunciavam a chegada.

Mas também não era tão simples: Felipe havia quebrado o dedo mindinho. Quase uma fratura exposta. Ele chorava, gritava, resmungava e, é claro, praguejava.

Após a medicação e o gesso - e depois de muitos berros -, o médico o encaminhou para uma enfermaria e Felipe fez questão de ser levado em uma cadeira de rodas.

Chegando ao quarto, onde havia uma única outra pessoa, ele foi colocado cuidadosamente em um dos leitos e ali ficou.

Havia uma bela adolescente na cama ao lado, com ar de interrogação tentando olhar para fora. A garota, de pele muito clara, vestia um pijama de pequenas flores vermelhas, um pequeno gorro cor-de-rosa e, assim que Felipe se acomodou, ela perguntou:

- Você ouviu os gritos? O que era aquilo? O que aconteceu lá fora? Você viu alguma coisa?

Felipe corou, tentou disfarçar e disse:

- Er... Bem... É que... Eu quebrei o dedo.

- É mesmo? Mas e os gritos? Você viu o que era? - insistiu a garota.

- Era eu... Tava doendo muito, sabe? - Felipe estava realmente envergonhado e chegou a abaixar a cabeça para fazer a dolorosa confissão.

A garota não se conteve e deu uma gargalhada, dizendo:

- Me desculpe, mas é que eu fiquei assustada. Achei que tinha alguém morrendo lá fora. - Ela sorriu, olhando para Felipe que retribuiu com um sorriso encabulado.

Ao dizer isso, ela continuou:

- Nós não nos apresentamos... Oi, eu sou Cíntia, e você?

- Sou Felipe, o Poderoso do Dedinho Quebrado.

Os dois riram, Cíntia levantou da cama e, arrumando a mangueira do soro que estava em seu braço, foi até o leito de Felipe:

- Deixa eu ver seu pé.

Ela se aproximou, tentou olhar entre o gesso - parecia uma verdadeira profissional - e, após minuciosa análise, sentenciou:

- Pode ficar tranquilo, Felipe, isso sara.

- Pôxa, eu fico realmente aliviado em saber - disse Felipe em extrovertida ironia.

Cíntia estampou um belo sorriso, sentou-se em sua cama e perguntou:

- Conte como aconteceu?

- Ei, você é curiosa, hein? - disse Felipe em simpática brincadeira. - Mas vou te contar: eu estava correndo descalço pela casa, quando topei na quina do sofá. Só senti o estalo dos ossos quebrando e já deitei no chão. Confesso: parecia uma criança chorando... Mas é que tava doendo demais. Você sabe como é, não sabe?

A menina riu da forma que Felipe contou a história, pois qualquer outro garoto tentaria parecer um herói.

- Você é uma comédia, Felipe.

- Isso é um elogio?

- Claro que é, seu bobo.

- E você, Cíntia, por que está aqui?

- Bem - respondeu a menina, - eu estava um pouco fraca hoje e meus pais me trouxeram pra tomar este soro. Olha, Felipe não fico muito a vontade em falar sobre isso, mas você é tão sincero que ficarei constrangida se não lhe mostrar.

Cíntia tirou o gorro e revelou a cabeça toda branca e lisinha. Ela era careca. Felipe não conseguiu esconder a surpresa e a menina perguntou:

- Desapontado?

- Não, não, imagina - disse Felipe. - Não fiquei desapontado, não. Só fiquei surpreso. Só isso.

Depois de uns breves segundos de silêncio, ele perguntou:

- Posso perguntar o que você tem?

- Pode. Eu tenho câncer. É a quimioterapia que me deixa com esse cabelo... Ou melhor, sem esse cabelo.

- E... Isso sara? - perguntou Felipe.

- Eu, sinceramente, espero que sim. E espero que sare logo, pois já tô cheia de hospital... Logo, logo vou começar a gritar igual a alguém que eu conheço...

Os dois riram e se descontraíram novamente.

Enquanto Cíntia colocava o gorro, Felipe, meio que engasgando as palavras, disse:

- Posso te falar uma coisa, Cíntia?

- Claro, o que você quer dizer?

- Quero dizer que, com ou sem esse gorro, com ou sem cabelo, eu te achei linda.

Foi a vez de Cíntia corar.

Ficaram ali no quarto por cerca de duas horas conversando sobre diversos assuntos, até a mãe de Felipe vir buscá-lo.

Antes de sair, ele pediu o número do celular de Cíntia e ela deu, mas, sinceramente, não acreditou que Felipe sequer iria se lembrar após sair por aquela porta.

Ledo engano.

Duas horas depois, o garoto mandou uma mensagem pelo celular, desejando melhoras.

E assim começou a amizade de Felipe e Cíntia. Trocaram mensagens por celular, depois e-mails, alguns telefonemas e, tão-logo o corajoso garoto tirou o gesso, foi fazer uma visita à nova amiga.

Vários encontros, várias conversas, sorrisos e confidências.

Às vezes, Felipe ficava triste, pois Cíntia não podia recebê-lo em razão das crises que, de vez em quando, acometiam a garota. Mas eles aprenderam a lidar até mesmo com isso.

Os pais da menina aprovaram de imediato a amizade, pois sabiam que aquilo fazia bem para ela.

Num belo dia de sol, os dois amigos estavam sentados na borda da piscina da casa de Cíntia, molhando os pés na água e conversando, até Felipe dizer:

- Cíntia, eu admiro muito você.

- É mesmo? E posso saber por quê?

- Pode. Eu admiro sua força, sua coragem, sua determinação e vontade de viver. Sabe aquele dia em que eu entrei no hospital gritando como um louco? Pois então, era apenas um dedo. Era apenas uma pequena dor e eu fazendo todo aquele escândalo. Eu me sinto até envergonhado de lembrar. Olho pra você e a vejo lutando todos os dias para viver. Sua vida é uma luta, minha amiga. E sempre que eu olho para você, você me retorna com esse sorriso lindo e com esses olhos cheios de brilho. Nos preocupamos com coisas tão pequenas em nossa vida e fazemos estardalhaços por coisas tão insignificantes; acabamos por esquecer o que realmente interessa pra nós. Você parece ser diferente. Admiro sua força.

Cíntia continuou mexendo os pés na água, com um olhar perdido no azul da piscina e, depois de um tempinho, disse:

- Meu amigo, quero confessar uma coisa - suspirou. - Eu não sou forte, Felipe. Sou como qualquer outra pessoa. Mas se eu não sorrir, o que vai me restar? Se eu não viver, o que vai me sobrar? Eu faço essas coisas, pois é só o que eu tenho pra viver. O que eu queria mesmo é estar lá fora correndo. Ir pra escola e conviver com todas as pessoas. Eu não sou uma fortaleza; sou uma menina de dezesseis anos que só quer viver. Às vezes, eu choro, mas faço isso sozinha, à noite, para meus pais não verem, pois quero que eles sintam que estou bem. Isso os deixa felizes. Às vezes, vejo minha mãe ou meu pai chorando pelos cantos da casa, mas quando chego perto eles sorriem. Eles querem que eu sinta que eles estão cheios de esperança.

- A garagem está cheia de coisas pra mim - ela continuou -, uma motocicleta, brinquedos, patins, etc., etc., mas meus pais, nem eu, sabemos se um dia poderei usar tudo aquilo. Quando vem a dor, eu grito; eu grito mais alto que você gritou aquele dia, Felipe. Nessas horas, eu... eu... sinto vontade de morrer. Sinto vontade de que tudo isso acabe logo, que a dor acabe de uma vez. Sabe, Felipe, eu acredito em Deus, mas não consigo entendê-Lo. Um dia eu espero ser digna de poder sentar ao lado do trono dEle pra poder perguntar o porquê de eu ter passado por tudo isso. Eu ainda acredito que Ele me dará uma boa resposta e, então, e passarei a entendê-Lo.

- Cíntia... - disse Felipe, mas foi imediatamente interrompido pela menina:

- Quieto, Felipe, deixa eu encostar minha cabeça aqui no seu peito.

Colocou a cabeça no peito do rapaz e eles ficaram ali, olhando para o tempo, fazendo ondas com os pés, até que Felipe quebrou o silêncio:

- Cíntia... Isso sara. Por favor, não morre, não.

- E por que eu não deveria morrer?

- Porque eu estou realmente apaixonado por você.

Os dois se olharam e o tempo parou... parou em um beijo que pareceu durar uma eternidade; em um sentimento puro chamado amor... um amor jovem, mas amor. Naquele momento, os dois estavam vivos, sem dor; eram simples adolescentes...

Felipe e Cíntia - a amizade se transformou em namoro. As visitas continuaram e o sentimento entre eles aumentou. Como é normal acontecer, os pais dos dois se preocuparam, mas ninguém interferiu. 

Como sempre, houve alguns dias em que Cíntia não podia receber Felipe por causa das crises e ela nunca permitiu que ele presenciasse um momento de dor. 

Nas férias de fim de ano, Felipe viajou com a família para o Pantanal do Mato Grosso. Ele prometeu trazer um presente para a namorada. 

Foram vinte (intermináveis) dias em um retiro de pesca com o pai, e Felipe comprou um tuiuiú artesanal, feito com madeira, para dar de presente para a Cíntia. 

Assim que chegou à sua cidade, pegou o presente e correu para a casa da garota; pretendia fazer uma surpresa. Porém, chegando lá, foi recebido por Mara, a mãe de Cíntia. Ela estava com os olhos vermelhos e inchados. Mal conseguiu explicar para o menino:

- Felipe, meu querido... Eu queria te dizer obrigado... Mas nossa menina se foi... Ela não resistiu... Na noite anterior à crise, ela disse que estava com saudades de você, mas que logo você estaria de volta... Felipe... Eu lamento... 

Naquele momento, Felipe não conseguiu dizer nada. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ele chorou e teve forças apenas para erguer o embrulho de presente - amassado enquanto ouvia a noticia da morte de Cíntia - e entregar para a mãe dela. Virou-se e foi para casa.

Ao chegar em casa, com os olhos cheios de tristeza, seu pai Antônio o esperava, pois já sabia da notícia. Não falou nada, somente colocou a mão no ombro do filho e depois o abraçou. Os dois ficaram sentados na calçada, em silêncio, até que Felipe disse: 

- Pai. Tá doendo. 

- Eu sei, meu filho... também me dói ver você assim. 

- Ela sabia resistir à dor e acho que vou ter que aprender - suspirou. - Acho que existem coisas que saram e outras que nunca saram. Dessas coisas que saram, muitas delas a gente tem que aprender a conviver com as cicatrizes deixadas. Das que não saram, a gente deve viver com todas as nossas forças enquanto elas não nos matam. 

- Meu filho, você está aprendendo só o começo da vida. Tem muito mais pela frente. Continue assim, sendo forte. 

- Como dizia a Cíntia, "eu não sou forte", mas vou lutar para ser. 

Por um momento, Felipe olhou distante, até pensar em algo que realmente iria fazer diferença não apenas em sua vida, como na de outras pessoas: 

- Pai, como faço pra ajudar pessoas com câncer? 

Antônio sorriu e abraçou o filho. Formariam uma bela dupla de assistentes para pessoas acometidas por essa doença. 

Denis Cruz 

Nota do autor: Escrevi esse conto em 2005, quando não tinha muita noção do que era enfrentar o câncer. Em 2007 foi diagnosticado um câncer (linfoma) em minha mãe. Desde então, minha família vem acompanhando a luta (e lutando junto) com a "Dona Mercedes". Depois de uma série de sessões de quimioterapia, o câncer cedeu, retornando no fim de 2008. Durante este ano, vivemos uma das nossas maiores batalhas, tendo momentos de desespero e muitos outros de intensa esperança - e é justamente essa esperança que ainda nos põe de pé. Conheci um universo que me era oculto: os hospitais de câncer; vi pessoas - crianças, jovens, idosos - vencendo o maior desafio de suas vidas; também acompanhei sonhos se desfazerem. Chorei junto e abracei familiares que perderam seus queridos, entre eles, a mãe de um garoto de 11 anos, que não resistiu ao tratamento de leucemia. O que tenho aprendido com tudo isso? "Existem coisas que saram, outras que nunca saram" e, ainda, as que demoram para sarar. Minha mãe? Estamos quase recebendo alta, após a última fase do tratamento, e esperançosos na graça de Deus de que esta seja uma daquelas doenças que apenas demoram para sarar, pois "sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito" (Rm 8:28).

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