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sexta-feira, 12 de março de 2010

Imunidade prévia e a gripe

Escrito por Atila Iamarino

Recebi um comentário de Paulo Amaral com perguntas fantásticas, que me fazem adiantar este post. Abaixo vão as perguntas, e a resposta que explica o que elas têm de importante:

Seria a vacinação contra a gripe anual, responsável pela baixa no número de relatos em idosos?
Qual a eficácia da vacina produzida por cepas de A/Solomon Islands/3/2006 (H1N1),
A/Brisbane/10/2007 (H3N2) e A/South Dakota/6/2007 (vacina contra a gripe), principalmente relacionado a“proteção cruzada”?

Acredito que geneticamente produza uma primeira barreira de proteção, pois o vírus atual apresenta hemaglutinina de superfície e neuraminidase semelhantes.
Antes de tudo, um breve resumo sobre os mais de 90 anos que o
H1N1 tem entre nós e a importância do rearranjo e da imunidade:



Circulando talvez desde 1906 em porcos e humanos, o H1N1 de 1918 se originou de um vírus aviário [1]. Quando se espalhou mundialmente em duas ondas, uma em março (primavera no Hemisfério Norte) mais leve, e outra em agosto (outono)*, matou cerca de 50 milhões de pessoas mundialmente. Mais do que a Primeira Guerra mundial, e mais do que qualquer outra doença em um período tão curto. Diferente de qualquer outra gripe até hoje, a gripe de 1918 matou cerca de 2,5% dos infectados e atingiu principalmente os jovens. Enquanto uma gripe sazonal mata os imunocomprometidos, crianças muito novas que ainda não tiveram contato com a gripe, e idosos que já não têm mais uma resposta imune bem sustentada, a cepa de 18 matou muitas pessoas entre 20 e 35 anos.

Houve pelo menos mais uma onda depois, mas não atingiu nem de longe a mesma gravidade. Desde então, o H1N1 circula na população humana. Ele causa a gripe anualmente mutando suas proteínas externas, a Hemaglutinina e a Neuraminidase (HA e NA), o suficiente para escapar da imunidade coletiva. Mas em 1957 o vírus fez algo novo. Ele havia se rearranjado, misturado seus genes com um vírus aviário, e adquiriu além do gene PB1 novas HA e NA. Guardem essa informação e reparem o quão recorrente isto vai ser.

Com estas novas proteínas de superfície o vírus deixou de ser reconhecido por anticorpos e causou uma pandemia, a Gripe Asiática. Como as novas Hemaglutinina e Neuraminidase não eram mais reconhecidas pelos anticorpos em testes de inativação do vírus, as antigas passaram a ser chamadas de H1 e N1 e estas receberam o nome de H2 e N2.

O H2N2 continuou circulando na população até 1968, quando fez um grande rearranjo novamente. Mais uma vez os genes PB1 e HA aviários entraram na população humana. A nova HA não era reconhecida por nosso sistema imune, e o vírus causou outra pandemia. A nova HA não era nem H1 nem H2 e passou a ser chamada de H3. Este H3N2 circula até hoje entre nós, junto do H1N1 de 1951, que foi reintroduzido na humanidade em 1977 provavelmente por testes vacinais. Os 26 anos que o H1N1 ficou fora, substituído pelo H2N2, foram suficientes para o surgimento de mais de uma geração de suscetíveis.

Abaixo um resumo da história do nosso Influenza, bem como os vírus suíno, aviário e humano que contribuíram para o H1N1 atual [2]. Reparem que os vírus suínos se rearranjaram com vírus humanos e aviários, o que causou a confusão das primeiras análises da cepa Califórnia 2009 (então chamado de gripe suína). Se achava que este vírus tinha origem suína e/ou humana, e é o caso, mas em seu passado:





Origem e rearranjo dos Influenzas humano

Notaram o padrão? Periodicamente o vírus se rearranja e adquire novas HA e NA, justamente as proteínas que nosso sistema imune reconhece mais prontamente. Assim, o vírus novo é inédito para a população. Ou pelo menos em parte.

Mas qual o papel da imunidade prévia na população?

Segundo Palese e colaboradores, a imunidade prévia teve papel inclusive na pandemia de 1918 [3]. Contrariando a idéia de que a mortalidade maior em jovens foi causada por uma resposta exagerada do sistema imune. Eles argumentam que a curva etária em W – com crianças, jovens e idosos entre os mais atingidos – é um efeito da imunidade de idosos.

Em uma população que nunca foi exposta a um vírus, ele tende a causar um grande número de mortos em uma curva em V matando as crianças muito novas e adultos e idosos em maior quantidade. A resposta imune de crianças entre 5 e 14 anos costuma protegê-las mais do que outros. Foi assim nas Ilhas Faroé com a entrada do sarampo em 1846, com a varíola trazida pelos espanhóis para as Américas.

E foi assim com os esquimós que morreram em 1918. Eles, que até então não haviam contraído a gripe já que o contato frequente com a civilização moderna começara a pouco tempo, tiveram a maior mortalidade. Em muitas tribos apenas algumas crianças sobreviveram. Para Palese, a gripe Espanhola só não matou mais adultos e idosos pois eles já haviam sido expostos a um vírus parecido anos antes, provavelmente antes da pandemia de 1889:



E o vírus atual?

Como podemos ver pela primeira figura, o vírus atual recebeu novas HA e NA. A H1 do vírus suíno que circula em porcos desde 1918 e se rearranjou com um vírus humano e outro aviário. A NA do vírus suíno europeu de origem aviária também. Logo:Qual a eficácia da vacina produzida por cepas de A/Solomon Islands/3/2006 (H1N1), A/Brisbane/10/2007 (H3N2) e A/South Dakota/6/2007 (vacina contra a gripe), principalmente relacionado a “proteção cruzada”?
Muito baixa, uma vez que este vírus contém HA e NA novas. Existe alguma reação imune, visto que podemos tipá-las como H1 e N1, mas não o suficiente para proteção. Mas ainda ficamos com uma pergunta:

Seria a vacinação contra a gripe anual, responsável pela baixa no número de relatos em idosos?
Provavelmente a baixa nos relatos de idosos é causada por uma exposição prévia, inédita nas gerações mais recentes. Algo como o que ocorreu em 1918. Durante quanto tempo nosso sistema imune ainda é capaz de reconhecer um vírus que já encontramos? Aparentemente pela vida toda. Pelo menos é o que ocorre com os nonagenários sobreviventes à Gripe Espanhola, que ainda hoje, mais de 90 anos depois, possuem anticorpos inativantes contra aquele vírus[4].
E há resposta imune dos idosos para o H1N1 suíno atual?

A resposta é… sim! Segundo o CDC, 1/3 das amostras de pessoas com mais de 60 anos coletadas entre 2005 e 2009 possuem anticorpos reativos contra este Influenza. Contra menos de 10% das pessoas entre 18 e 64 anos e nenhuma das crianças testadas [5]. Se fosse o caso das vacinas anteriores proporcionarem essa proteção, tal resposta seria encontrada em pessoas vacinadas, independente da faixa etária. E crianças estão entre os que recebem a vacina anualmente.
Não é o caso de excluir os idosos dos candidatos à nova vacina, uma vez que esta imunidade foi verificada in vitro e não in vivo, mas nos ajuda a entender a dinâmica deste vírus com o qual convivemos por longa data.

* não podemos ter certeza de que foi o mesmo vírus que causou ambas as ondas, pois as únicas amostras do vírus que temos são de vítimas que morreram no inverno, mas como não encontramos traços de outros vírus circulantes nem nos porcos, é improvável que tenha sido um vírus diferente.

Resta ainda a parte final do comentário, que ficou por último pois a resposta que darei é minha opinião, sem uma bibliografia de referência direta:

Nesse momento não seria recomendado a vacinação PNEUMOCOCICA? Pois além da proteção (mesmo sabendo que não existe vacina com 100% de eficácia) contra a pneumonia pneumocócica (bactéria Streptococcus pneumoniae, pois atuaria como infecção oportunista gerando agravamento do quadro do paciente) e bacteremia pneumocócica também protege contra a septicemia.

Aqui o Paulo se refere à vacina contra pneumonia, uma das complicações da gripe normal que causam mortes. Acredito que não seja o caso, por vários motivos: a vacina é distribuída normalmente para crianças, e acredito que a produção anual não seja suficiente para imunizar uma parcela grande da população como forma de prevenção; vacinar apenas os contaminados é ineficiente, dado o tempo necessário para desenvolvermos resposta imune; por se tratar de uma bactéria, pode-se tratá-la com antibióticos, uma medida bem eficaz com diagnóstico feito em tempo.

Fontes:

[1] Smith, G., Bahl, J., Vijaykrishna, D., Zhang, J., Poon, L., Chen, H., Webster, R., Peiris, J., & Guan, Y. (2009). From the Cover: Dating the emergence of pandemic influenza viruses Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (28), 11709-11712 begin_of_the_skype_highlighting 11709-11712 end_of_the_skype_highlighting DOI: 10.1073/pnas.0904991106

[2] Morens, D., Taubenberger, J., & Fauci, A. (2009). The Persistent Legacy of the 1918 Influenza Virus New England Journal of Medicine, 361 (3), 225-229 DOI: 10.1056/NEJMp0904819

[3] Palese, P., Tumpey, T., & Garcia-Sastre, A. (2006). What Can We Learn from Reconstructing the Extinct 1918 Pandemic Influenza Virus? Immunity, 24 (2), 121-124 DOI: 10.1016/j.immuni.2006.01.007

[4] Yu, X., Tsibane, T., McGraw, P., House, F., Keefer, C., Hicar, M., Tumpey, T., Pappas, C., Perrone, L., Martinez, O., Stevens, J., Wilson, I., Aguilar, P., Altschuler, E., Basler, C., & Jr, J. (2008). Neutralizing antibodies derived from the B cells of 1918 influenza pandemic survivors Nature, 455 (7212), 532-536 DOI: 10.1038/nature07231

[5] Centers for Disease Control and Prevention (CDC) (2009). Serum cross-reactive antibody response to a novel influenza A (H1N1) virus after vaccination with seasonal influenza vaccine. MMWR. Morbidity and mortality weekly report, 58 (19), 521-4 PMID: 19478718

leia mais sobre o AH1N1 no site da Biblioteca Virtual da saúde - Clik na imagem abaixo

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